Tabula Rasa

Em 1994, o lingüista do MIT Steven Pinker publicou um livro intitulado “The Language Instinct”, cujo tema central é uma discussão ampla da capacidade humana para a linguagem. A questão central é entender que o milagre aparente da aquisição da linguagem por uma criança humana é, de fato, a operação de um órgão complexo, alicerçado na fisiologia do cérebro e desenvolvido pela evolução. Dá para argumentar que o desenvolvimento deste “órgão lingüístico” é o fato central da evolução humana, ou seja, que a operação deste órgão é a característica mais distinta do acidente evolucionário que conduziu à aparição do bicho homem.

O funcionamento do órgão de linguagem é um assunto científico extremamente relevante e interessante. Ele representa a junção de diversas tradições científicas importantes, principalmente de neurofisiologia, de lingüística e de psicologia cognitiva, com aplicações no tratamento e compensação dos distúrbios da linguagem e na educação. Este estudo representa também um ponto de vista bastante ilustrativo sobre o que nos faz humanos.

A voz do autor do “The Language Instinct” é de um pesquisador apaixonado pela sua área, que vê no progresso alcançado pela sua disciplina um achado valioso, que pode e deve ser amplamente divulgado. Houve uma reação negativa considerável ao livro de Pinker, veja, por exemplo, o sítio do livro “The Language Instinct Debate” na amazon.com e o debate associado a ele. É claro que os criacionistas de plantão são bastante hostis às idéias exploradas por Pinker. Contudo, as críticas mais azedas vieram de uma outra direção – da comunidade de ciências humanas e sociais. O problema é muito simples. De maneira geral, as ciências humanas e sociais do século XX são construídas sobre um modelo bastante específico da natureza humana, e a proposta de um “instinto de linguagem” parece ser um ataque violento aos alicerces deste modelo.

Em 2002, Pinker publicou um outro livro, “The Blank Slate”, ou “Tabula Rasa” que é primariamente uma resposta a todo o ultraje suscitado pelo “The Language Instinct”. De fato, o objetivo do livro de Pinker é delinear cuidadosamente as hipóteses por trás deste modelo hegemônico de natureza humana das ciências sociais, explorar suas origens históricas e contrapor argumentos racionais, ao que é, em última análise, uma construção de natureza ideológica e política. O autor de “The Blank Slate” é zangado e ácido, muito menos simpático que o autor do “The Language Instinct”, mas sua argumentação continua a ser bastante efetiva.
De acordo com Pinker, o modelo padrão das ciências sociais inclui três hipóteses centrais:

1) Tabula Rasa: o cérebro humano é um instrumento computacional que emerge do útero sem nenhuma estrutura a priori, e é completamente formado pelos condicionantes sociais operantes após o nascimento.

2) O Bom Selvagem: os seres humanos são intrinsecamente bons, e são corrompidos pela sociedade.

3) O Fantasma na Máquina: o locus da livre-escolha, independente e desvinculado da biologia humana.

Colocadas desta maneira, essas três hipóteses são obviamente absurdas. Em particular, elas rejeitam o papel criativo da evolução e dos condicionantes biológicos da natureza humana, e representam, de fato uma negação completa do que significa ser humano. Mais ainda, essas hipóteses absurdas estão refletidas em muitas das práticas modernas em política, nas leis, na educação e nas práticas sociais de governos e instituições. É curioso observar que muitas das práticas sociais vigentes, aquelas que parecem mais sem sentido e contrárias ao senso comum estão formalmente apoiadas nesta negação sistemática da natureza humana feita pelas ciências sociais do século XX. Tome, por exemplo, o discurso hegemônico sobre a natureza das instituições penais – em que todos os “especialistas” concordam na mais absoluta essencialidade dos mecanismos de resgate e resocialização dos presos. Isto é algo que todos sabem, pela mais elementar experiência com pessoas, ser quase inteiramente irrelevante.

Comentários

Roberto Cohen disse…
Ué...

Milton, você concordou ou discorda do autor?

Quando pensei que ia ser desenvolvida uma argumentação sobre as idéias postuladas... O texto acaba.

?

El Cohen
Roberto,

No "Tabula Rasa" o tema central do Pinker é o absurdo das hipóteses de "tabula rasa", "bom selvagem"
e "o fantasma na maquina". Ao dizer
que estas hipóteses são obviamente absurdas eu estou concordando com a tese central dele, e, ao mesmo tempo, fazendo uma discreta crítica por ele passar um livro inteiro demonstrando o óbvio.

Reconheço, contudo, que neste mundo irracional, pode ser bom discorrer longamente sobre o óbvio.