Cultura universitária

Eu passei uma semana de abril visitando a University of Wisconsin - Madison. É uma universidade pública norte-americana das boas, número 17 no ranking de Shangai. Madison foi um centro importante de protestos contra a guerra do Vietnã e pelos direitos civis nos anos 1960, essa história é contada no ótimo documentário War at Home.
Como em todas as universidades norte americanas públicas ou privadas os estudantes pagam parte da sua formação. Seguindo ouvi da reitora Biddy Martin, a UW cobra a segunda menor anuidade de uma universidade pública, depois da Universidade de Iowa. Na minha primeira visita a Madison, no ano passado, ouvi que a contribuição do estado ao orçamento da universidade não passava de 14%. O resto vem de fundos federais (principalmente através de bolsas e contratos de pesquisa), fundos privados e do endowment, essa palavra de difícil tradução porque não é um hábito brasileiro. Para completar, com a eleição do ultra-conservador republicano Scott Walker para o governo do estado o campus de Madison está sendo privatizado. Isso mesmo. Essa palavra que causa horror aos intelectuais das universidades públicas brasileiras foi muito bem recebida pela reitora e comunidade da UW-Madison (mas não pelos demais campi da universidade). Pior, a reitora não foi eleita pelos professores, alunos e funcionários, mas escolhida pelo board of regents (conselho diretor) que é indicado pelo governador (com mandato de sete anos) e envolve representantes da sociedade. Na composição atual só um é da comunidade universitária. Com a privatização o board of regents será substituído por um board of trustees.
Quando cheguei ao Brasil deparei com a notícia de que a família de um banqueiro que havia deixado R$1 milhão para a USP estava pedindo o dinheiro de volta alegando que a faculdade de Direito não cumpriu o contrato de doação que estipulava que o auditório reformado com o dinheiro doado tivesse o nome do doador.
O Brasil tem uma cultura universitária auto centrada, claramente inspirada na Europa da virada do século XIX para o XX.
Vou aqui enumerar algumas das suas características, com a intenção óbvia de acender um debate para que possamos pensar em mudar.

1. Ensino público deve ser gratuito. Partindo do princípio (correto) que pessoal bem formado contribui para o progresso do país, entende-se que o próprio país (ou estado) deve bancar a formação de seus abnegados cidadãos selecionados pelos vestibulares. Além disso, o ensino superior público não for gratuito, como os cidadãos das camadas mais pobres poderão ter alguma chance de subir na vida?
Ocorre que se por um lado a formação superior de qualidade contribui para o progresso do país, ela também contribui para o progresso pessoal do indivíduo. Não me parece absurdo que o indivíduo contribua para parte dessa formação. Programas de bolsas e de crédito educativo podem dar conta de apoiar os estudantes mais pobres. Hoje em dia na Europa já é comum a cobrança de taxas para o ensino superior (em Portugal elas se chamam propinas). As famílias americanas que podem guardam dinheiro para garantir a formação de seus filhos.

2. Universidade privada não faz pesquisa de qualidade. Algumas das melhores universidades do mundo são privadas. Ocorre que as boas universidades privadas não têm fins lucrativos, e funcionam como gestoras de fundos que recebem de fontes públicas e privadas. Assim não ficam amarradas às regulações e leis da burocracia estatal ganhando agilidade e autonomia administrativa. No Brasil praticamente todo o sistema privado tem fins lucrativos. Falta na nossa cultura a percepção de que um patrimônio privado bem gerido pode trazer grandes vantagens educacionais. Antes que alguém me censure, aviso que tenho conhecimento de casos catastróficos de mau uso do dinheiro público por parte de instituições privadas. Um célebre museu na Av. Paulista é o melhor exemplo disso.

3. A comunidade universitária é soberana na sua autogestão. Reitores devem ser eleitos pela comunidade, preferivelmente em eleições paritárias. Todo o funcionamento da universidade deve ser regido por órgãos colegiados que devem ser soberanos.
Acho que em poucos lugares do mundo a escolha de reitores ocorre exclusivamente pela comunidade universitária. As universidades são financiadas pela sociedade e devem considerar essa sociedade na sua gestão. É mais que razoável que um comitê dessa sociedade participe da escolha dos dirigente, que não precisam obrigatoriamente ser professores da própria universidade.
Não aceitamos interferência externa nem mesmo de um doador que vincula sua doação a seu nome batizar algo da universidade.
Sempre que visito universidades no estrangeiro me surpreende que os nomes dos edifícios, bibliotecas, laboratórios, cátedras sejam associados a doadores que nem sempre passaram pela universidade. Eu tive meu doutorado financiado pela bolsa Helmuth Heineman, O senhor Heineman nunca passou pela minha universidade. Ele enriqueceu muito com suas minas de cobre no Chile e doou uma quantidade razoável de dinheiro para estabelecer um fundo que até hoje financia doutorados de latino-americanos em áreas remotamente ligadas a energia em universidades israelenses. Se fosse no Brasil as universidades decidiriam atribuir o nome de algum personagem local ao fundo e talvez o senhor Heineman desistisse de sua doação. Foi exatamente isso que causou a discórdia entre doador e USP.

4. Todo conhecimento tem o mesmo valor, portanto os salários de todos deve ser igual. Isso viola um princípio básico do mercado, e condena algumas áreas a não ter as pessoas mais brilhantes trabalhando na universidade. Infelizmente não existem tantas oportunidades para um físico ou um filósofo como para um dermatologista. Da mesma forma um estudante de medicina está disposto a pagar mais por sua formação que um de antropologia. Na tabela de taxas da UW algumas carreiras custam 3 vezes mais que outras. Há um motivo para isso. Seria importante as universidades poderem oferecer salários compatíveis com a área e competir por professores da melhor qualidade.

5. A educação superior é dever do estado. Se eu enriqueci em função do que aprendi na universidade isso é mérito meu e não devo nada para ela. Não há no Brasil a cultura de doações para as universidades, nem de ex-alunos que enriqueceram nem de empresários importantes. Há pouco tempo um dos empresários mais ricos do Brasil (educado em Harvard) doou um centro de estudos latino-americanos e caribenhos à pública University of Illinois at Urbana-Champaign. O centro leva seu nome. É verdade que no Brasil foi estabelecido o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, mas ele não é parte da universidade e deve-se a o esforço de um cientista brasileiro radicado nos EUA.
O endowment é provavelmente a fonte mais importante de recursos e de estabilidade financeira das melhores universidades do mundo. Nisso precisamos avançar em duas direções: as doações e as condições de aceitação.

Cinco pontos polêmicos é suficiente para um domingo à noite, mas certamente tem muito mais para se discutir sobre cultura universitária. Está mais do que na hora de revermos conceitos muito arraigados. Uma universidade mais dinâmica é muito importante para um país que percebe seu papel no futuro.

Comentários

Paulo Rebeque disse…
bom dia professor,
post muito importante para refletirmos sobre a universidade no Brasil e principalmente seu papel perante a sociedade.
Algumas dessas ideias, a princípio, podem parecer estranhas, não soar bem aos nossos ouvidos!!! Mas o fato é, os pontos levantados no post precisam ser, urgentemente, repensados...
Abraços
Paulo Rebeque disse…
Bom dia Professor,
Excelnte post. A princípio, as ideias colocadas podem não parecerem sensatas (não soarem bem aos nossos ouvido). Mas o fato é: esse pontos precisam ser repensados com "urgência urgentíssima".
Principalmente no que diz respeito ao papel da universidade perante a sociedade!!!
Accustandard disse…
Muito bom esse post, sem dúvida um convite a refletirmos e repensarmos sobre o assunto.
Marson disse…
Olá Professor!
Meu nível cultural está bem longe de toda a sua experiência gestora, mas vou arriscar um comentário.
Penso que nosso maior inimigo na gestão de recursos é o egoismo, seja na iniciativa privada ou pública. Os 5 anos de graduação me convenceram de que em toda a máquina da Universidade, da faxina aos mais renomados professores, a esmagadora maioria está preocupada apenas com seu próprio umbigo. O bem estar do ser humano passa longe dos objetivos da comunidade acadêmica.
Com esse perfil, acredito que, sob qualquer tipo de financiamento, dificilmente pode-se colher bons frutos de uma instituição.
Grande Abraço a Todos (as)!